IMPOSIÇÕES SOCIAIS, IMPROVISOS TEATRAIS - a partir de “Memórias Impressas” da Cia. Banzé
Por Danni Vianna
CRÍTICA ESPETÁCULO "MEMÓRIAS IMPRESSAS" IX ETU
9/3/20256 min read
“É, pois, necessário estudar com cuidado o destino tradicional da mulher. Como a mulher faz o aprendizado de sua condição, como a sente, em que universo se acha encerrada, que evasões lhe são permitidas, eis o que procurarei descrever. Só então poderemos compreender que problemas se apresentam às mulheres que, herdeiras de um pesado passado, se esforçam para forjar um futuro novo”.
Simone de Beauvoir, 1949
Vendas. Vestidos. Bordados. Bonecas. Bebês. Bolos. Saltos. Luvas. Condenações.
O público adentra no espaço cênico como quem entra num mar de objetos, numa casa de vó, num baú de memórias familiares - e justamente por isso, estranhas. Somos advertidas/os que se trata de uma peça-jogo - originalmente proposta por Claudia Schapira e rejogada pela Cia Banzé - na qual as diretoras prepararam uma série de comandos que tanto nós quanto as atrizes desconhecem. Como testemunhas deste acontecimento, parte do público recebe câmeras e filmadoras antigas, bem como pranchetas para anotações. Responsáveis por capturar as incertezas daquilo que virá. Então, uma pessoa é convidada a testar o dispositivo pelo qual as atrizes receberão as instruções. Um fone com um texto que deve ser dito enquanto escutado. A voz de outro que deve falar pelo seu corpo. O texto escutado e dito pela/o espectadora/espectador explica as regras do jogo, que envolvem projeções, sinos e distintas autorias textuais. Os relatos que veremos poderiam ser das atrizes, como também de outras pessoas. Por fim, como uma chave de leitura, o texto escutado e dito lança “aqui não há destino, nem futuro escrito”. A partir dessa frase, somos lançados na incerteza, da mesma maneira que as atrizes entram em cena vendadas, sem saber exatamente aquilo e aquelas/es que as esperam.
Fotografia de @dassahwengler
Explicadas as regras do jogo, analisado o tabuleiro e apresentadas as jogadoras, iniciamos a partida na qual três modalidades são experimentadas: coreografias simbólicas; depoimentos; textos manifestos. Primeiro elas cruzam o espaço e se chocam no meio em abraços apertados. Um misto de carinho e sufocamento, no qual uma das atrizes escorre dos braços da outra para correr novamente. Esse escorregar sintetiza o movimento geral da peça, que busca encenar os modos como pessoas lidas dentro do gênero femino, estão constantemente se enquadrando e desenquadrando nas imagens ideais da “mulher”. Dos desenquadres passamos ao enquadramento, quando por meio de projeções descobrimos que as atrizes estão em fuga, procuradas pela polícia, fichadas. Por meio de uma narrativa tripartida entre a filha, a mãe e a avó, vamos entendendo aos poucos que a jovem matou o padrasto que a abusava e por isso fugiu. Diante disso, o público é convidado a ler a sentença protocolada pelo juiz. Nas mãos do público, o destino das personagens
Em seguida, entramos em um momento no qual três estereótipos femininos são explorados a partir do dispositivo de fichas de figurino. Para cada uma das atrizes é entregue uma ficha com a descrição da figura da sua personagem, que muda a cada sessão. Elas precisam buscar no mar de objetos, aqueles que estão descritos na ficha. Assim, vemos se construir na nossa frente a Mãe, a Noiva e a Debutante. A coroa de Virgem Maria, as luvas apertadas e o salto desconfortável são objetos que sintetizam e explicitam as contradições dessas imagens, cujos relatos não só ouvimos como compartilhamos por meio de jogos. O salto vira a batata quente que ninguém quer ter em mãos. As bonecas são compartilhadas com o público para aliviar o fardo materno. E o buquê é ansiosamente batalhado pelo público, que dá mesma forma que a personagem, anseia em ter um casamento ideal. Esses dispositivos lúdicos a partir dos objetos símbolos coletivizam as personagens, fazendo ver que na plateia existem mães, amantes, noivas, jovens e outras tantas que não se enquadram nessas imagens, mas que por meio do jogo passam a compartilhar um terreno comum. Diferentemente da empatia dramática, na qual a/o espectadora/espectador se aliena plenamente da sua ação, a empatia lúdica proposta se efetiva justamente pela participação total do público dentro do acontecimento cênico. Se no plano dos depoimentos, as personagens se vêem isoladas diante das opressões, a Cia Banzé propõe que respondamos esse isolamento não com discursos positivos de superações individuais, mas sim com a união no aqui e agora entre distintos sujeitos. E ainda revela, por meio da interrupção, como esse senso de comunidade pode ser facilmente quebrado pelo machismo.
Em meio ao baile funk disparado pelo casamento, uma figura mascarada aparece. Um rosto de um homem branco, loiro, comercial de margarina. Em um aúdio off, ouvimos um texto asqueroso no qual um homem projeta nas mulheres seus piores desejos. Automaticamente a festa para, e o público se vê atônito diante de uma decisão: o que fazer frente a essa figura? Uns sentam, outros cobrem os ouvidos das bonecas que lhes foram entregues e outros ainda desejam expulsar a figura. Finalmente o áudio se encerra. O espectador que estava por trás da máscara é encaminhado para o seu lugar. Respiramos. E então novamente somos lançados para a tensão, não mais a partir do texto que escutamos, mas a partir da tensão corporal das atrizes, que são amarradas fortemente pelas diretoras, enquanto reflexionam sobre a frase de Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se”. Se explicitam as relações pessoais das atrizes com a frase, que passa a ser questionada frente aos recortes de raça, gênero e sexualidade. Em seguida, ouvimos relatos do público de outras sessões sobre sua relação com a peça.
Por fim, sentamos em um picnic para refletir sobre aquilo que vimos. Escutamos o espectador que foi a figura mascarada. Escutamos as atrizes. Um mediação dentro do próprio espetáculo. Mas que diferentemente das outras etapas do jogo, não parece ter regras muito definidas. E justamente por não ter contornos acaba reiterando posições hegemônicas, tanto sobre o tema abordado quanto pela relação do público com o teatro. Nesse sentido, é sintomático que a discussão tenha se centrado no desconforto do homem em representar a figura opressora, e que do público só homens comentaram a peça. Também, a posição das atrizes nesse momento se deslocou da tarefa de abrir possibilidades para tentar explicar a peça. Dessa forma, essa última etapa do jogo, apesar de instaurar uma comunidade temporária ao redor da comida se contrapondo ao isolamento vivido pelas personagens, parece entrar em contradição com o restante da peça, justamente pela falta de regras para brincar o jogo da mediação. Depois de passar por todas as casas do tabuleiro, é possível perceber a relação dialética entre forma e conteúdo proposta pela Banzé. Se por um lado escutamos relatos sobre como a vida de pessoas identificadas dentro do gênero feminino é amplamente determinada por pressões sociais, por outro vemos em cena como as atrizes escorregam das determinações propostas pela dramaturgia e direção. Apesar de não saberem o que virá em seguida na cena, isso não significa que estão reféns daquilo que é indicado pelo projetor ou dito pelos fones de ouvido. O interesse do espetáculo está justamente em como, a partir das regras do jogo, as atrizes criam algo novo a cada sessão, alterando maneiras de dizer, propondo novas relações com o público, descobrindo novas disposições corporais a partir dos figurinos propostos. Revelam como podemos abrir possibilidades, a partir e apesar das imposições sociais. E isso se radicaliza quando ocorre uma falha. Quando os fones se desconectam ou se descompassam. O não saber como resolver aparece aqui como possibilidade e não como erro. Possibilidade não só de criar outras dinâmicas cênicas, mas também a partir delas imaginar outros destinos sociais para aquelas figuras que ficaram suspensas por conta de uma falha técnica.
Fotografias de @dassahwengler
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Fotografias de @dassahwengler


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