E SE… a peça se tornasse também um autoexame?

CRÍTICA ESPETÁCULO "SISTEMA SUBURBIA" IX ETU

Por Kamilly Ols

9/3/20252 min read

       “Sistema SubUrbia”, dirigida por Luciene Guedes no Departamento de Artes Cênicas da USP, surge como um marco duplo: é a primeira direção solo da professora no curso e também a primeira vez, após a mudança do currículo, que estudantes do CAC são conduzidos por uma direção docente. Esse ineditismo imprime à cena um peso pedagógico e simbólico, tanto para quem atua quanto para quem conduz.

          A dramaturgia SubUrbia, de Eric Bogosian, que aborda sobre um grupo de jovens de 20 e poucos anos sem rumo, vivendo ainda em sua cidade natal norte-americana, ganha novas camadas com as autointervenções do elenco, que cria fissuras no texto original. São pausas confessionais, momentos em que os atores se expõem, criando um espaço de exame — entre ator, personagem e público.

         Essa dimensão do autoexame se manifesta também na disposição espacial do espetáculo: os atores se distribuem nas arquibancadas e a plateia ocupa o que seria tradicionalmente o espaço cênico. Dessa forma, desde o primeiro momento, a encenação sinaliza que a investigação é coletiva e atravessa todos os envolvidos. É nesse jogo entre ficção e realidade, ensaio e espetáculo, que se instaura o campo de pesquisa do ator e da direção dentro da peça.

      A iluminação atua como um bisturi, cortando o espaço e delineando — entre luzes gerais e focos — os momentos em que a dramaturgia base cede lugar à investigação dos estudantes. Mais do que um recurso estético, ela revela as quebras narrativas que desconstroem o texto original, evidenciando os procedimentos clássicos da análise de cena, os questionamentos dos atores sobre seus personagens, suas escolhas e, sobretudo, sobre o próprio texto base. Na abertura dessa fissura entre o real e o ficcional, o olhar do público se desloca do personagem para o sujeito ator.

          Esse deslocamento evidencia o que Eleonora Fabião conceitua de corpo biopolítico, em que sujeito e personagem se confundem, e as fronteiras entre o pessoal e o teatral se tornam permeáveis. É nesse limiar que o espetáculo compreende também questões como racismo, xenofobia e violências periféricas. Feito de forma honesta pelo elenco, narrações, pausas confessionais e os silêncios, revelam o peso dessas experiências.

        Ao abordar tudo isso, a peça questiona se tudo precisa ser mostrado em cena ou se a sugestão e a investigação já cumprem seu papel. Dessa forma, a dramaturgia de Bogosian acaba funcionando mais como pano de fundo, dando espaço para variadas perguntas sobre o fazer teatral, o processo, e tudo que este envolve para um grupo de jovens em formação teatral. A direção de Luciene Guedes permite que cada intérprete se arrisque, mas dentro de um processo coletivo que reforça a escuta e a cumplicidade do grupo.

          Por fim, Suburbia não é uma montagem sobre a obra de Bogosian: é um laboratório de autoexame, em que direção, elenco e público compartilham o processo de investigação. Nesse espaço de exposição, risco e descoberta, o espetáculo confirma que: é necessário muitas perguntas para efetivar um processo cênico.

Fotografia de @dassahwengler