Crítica acerca da peça “Savana Glacial” da Cia. Gelo Seco

CRÍTICA ESPETÁCULO "SAVANA GLACIAL" IX ETU

Por Cadu de Andrade

9/4/20258 min read

      Ao escrever essa crítica, me encontro em um lugar muito delicado, pois, mesmo tendo tido um ótimo tempo assistindo-a, sendo impossível para mim dizer que não fiquei do início ao fim imerso naquela narrativa, tentando compreendê-la e desvendá-la, mesmo assim deparo-me com um certo obstáculo: “por onde começar?”. Diante dessa problemática, me impedi de escrever sem antes ter uma resposta coerente, até que, em um desses momentos pensando sobre, me veio à cabeça: “Se nem Maggie sabia onde estava e muito menos de onde seguir dali, por que, ao falar da história dela, me impeço de escrever por tão ínfimo detalhe?”. E assim vim, com páginas e mais páginas de anotações e uma memória, ainda que prejudicada, maravilhada com a obra.

    Deixando minha batalha pessoal à parte e indo para o que realmente importa, gostaria de iniciar com uma hipótese que há tempos lota minha cabeça pelo trabalho lindo da Cia. Gelo Seco. Imagine você, casado e feliz com sua esposa, apesar de todas as complicações, até que um dia, enquanto escrevia tranquilo em sua casa, escuta um barulho vindo da rua. Ao olhar, percebe que sua esposa tinha acabado de bater o carro em uma criança que, por ventura, era filha de uma conhecida do casal. Ao encontrar sua esposa, ainda viva, descobre, após certa melhora, que ela agora sofre com perda de memória recente. O que você faria?

     É nesse cenário assustador que a peça nos joga. Entretanto, de maneira brilhante, essa cena descrita é uma das últimas coisas que descobrimos nessa peça. Até então, acompanhamos a vida conturbada de Maggie, seu marido Michel e sua vizinha Agatha. Temos no palco: sofás, muitas caixas, uma mesa, cadeiras, um forno elétrico e um porta-molduras.

     Cada um desses elementos sendo usados, pelo menos ao meu entender, para algum paralelo narrativo com o atual estado não só da casa, mas da confusão mental de Maggie e do seu relacionamento turbulento. Primeiro temos o sofá, que, à primeira instância, estranha por não ser usado com frequência, nem na rotina solitária da dona de casa e nem quando o marido chega. Ausência de uso explicada na cena difícil de engolir, onde Michel tenta forçar sua própria esposa a atos libidinosos e, depois, se irrita pela recusa. Mostra a impossibilidade de encontrar um ponto para descansar e relaxar nessa casa.

   Após isso, temos as caixas, que demonstram uma mudança que nunca finda, uma lembrança de que eles tinham muitos planos para o futuro, planos que foram completamente destruídos com o acidente. As caixas nunca são esvaziadas porque não existe mais um porquê. Maggie não é mais a mesma, nenhum dos dois está feliz, mas ambos ainda ficam juntos, parados no tempo como itens esquecidos em uma caixa de mudança. Em seguida, as mesas e as cadeiras, que mostram a diferença de universo dos dois casados. Maggie, que passa um bom tempo fazendo bolos para entregar em cima dessa mesa, anotando e checando cada passo em um caderninho dado por seu marido para que não esquecesse das coisas. Junto desse conjunto de objetos também se encontra um forno elétrico, que, em um momento específico da peça, apita, indicando, narrativamente, o bolo pronto, mas também uma provável revivida de alguma parte da memória de Maggie. E a mesa de seu marido, que é onde ele senta para continuar escrevendo sua história — uma história de uma mosca e um copo de vinho, que voltaremos mais adiante. E, por último, o porta-molduras que, para mim, é o item mais importante dos mencionados acima. Primeiro, por ser um porta-molduras vazio, indica a desistência de um sonho — um sonho de algum dia colocar uma foto de uma memória que valha a pena reviver. Algo que não é mais necessário. Não há memórias que tenham a honra de serem retomadas, porque não há memórias no geral. Não restou nada para ser exposto além do que já está sendo: o vazio.

      Para além disso, o porta-molduras também remete às personagens, na minha opinião, mais interessantes dessa peça: Agatha e Simone. Agatha, como dito acima, é a vizinha do casal que faz o primeiro contato, procurando ajuda para usar o telefone, pois sua colega de quarto, Simone, havia sido presa por beijar um quadro. E é aí que o porta-molduras se faz mais uma vez presente. Na peça não há Simone, como também não há Max (cachorro que só é mencionado já estando morto) e, por conta disso, nunca haveria um quadro. A existência ou não dessa personagem tão excêntrica, que teve sua participação impossibilitada por atuar com a boca e uma obra plástica, foi algo que ficou na minha cabeça durante todo o tempo e reside até então, como um espaço vazio em uma galeria de arte, como se, entre visitas, tivesse dado uma “saídinha” para um encontro com uma amante improvável.

   Acredito que a ausência dessa personagem nos faz sentir muito mais a força e a vontade de Agatha de ajudar Maggie. Pois, mesmo tendo seu primeiro contato com o marido do casal, continuava indo de forma súbita e de aparência desesperada, tentar reviver as memórias na cabeça de Maggie como única justificativa de “já ter perdido algo no passado e não querer que isso aconteça de novo”. Dessa forma, é fácil simpatizar e gostar da personagem. Ou seria? Até que ela começa a se envolver com Michel de forma íntima. No início, parecia ser apenas uma forma de se manter por perto de Maggie, mas no meio do caminho, e com Maggie esquecendo os diversos auxílios recebidos, Agatha era um obstáculo, uma amante de seu marido, talvez um porquê do relacionamento estar tão ruim, talvez a primeira certeza em muito tempo da protagonista. Os dois têm um caso, Maggie sabe, e também sabe que logo, logo não vai saber mais, e isso a indigna, explodindo de uma vez durante um jantar entre os três e colocando tudo para fora. Nesta cena, vemos claramente o estado mental de Maggie, e acredito ser por volta dessa parte que reconheci que a peça estava sendo mostrada por sua ótica, não como espectadores externos, mas sim como observadores íntimos das memórias mais profundas dela. E, por conta disso, com o seguir da peça, era palatável o desespero de não conseguir garantir nenhuma verdade concreta. Tudo parecia errado ou, pelo menos, estranho. O marido era mal ou só cuidadoso demais? Agatha queria ajudar ou só piorar cada vez mais a situação de Maggie e ficar com seu marido? Por que o esmalte “Savana Glacial” retomou tantas memórias? Sim, era o favorito de Maggie, mas então por que ele não foi mencionado antes pelo marido? Ele conhece sua mulher? Ele merece perdão pelo que fez? O que ele fez? E ela? Ela merece perdão? Cadê o Max? Criança ou cachorro? Mas, mais importante que tudo isso, a pergunta que surge por uma figura comum desse misturado de memórias falsas e verdadeiras: quem é o homem de capacete andando pra lá e pra cá com uma rosa?

       Antes de seguirmos para o fim, tanto dessa peça quanto da crítica, seria impossível não mencionar o nome Max, que apareceu como 3 personagens diferentes (que, na minha interpretação, eram um só): filho escondido/perdido/negado de Maggie e Michel, cachorro morto de Simone e criança morta por Maggie. Todos esses eram Max, e o que os unia era sua ausência e a dúvida de que sequer tenham existido. Max, ou pelo menos a ideia de um, criou uma chama em Maggie, chama essa muito aumentada pelas fotos mostradas por Agatha que fizeram a mulher ficar contra o marido fortemente, aumentando ainda mais o asco sobre ele quando este partiu pra cima da esposa, berrando, ofendendo e ameaçando. Quem quer que seja Max, essa memória não era permitida, talvez que nem alguma memória que antigamente estaria exposta em uma moldura, ou nas páginas em branco de um álbum de fotos, no vazio profundo de uma caixa. Maggie, buscando um ponto seguro, uma certeza no meio de um turbilhão de dúvidas, o encontra em um homem, um motoboy que era responsável por levar seus bolos à venda. Mesmo não lembrando de quase nada de sua vida antes do acidente, Maggie lembrava de cada ínfimo detalhe da vida desse homem, que mesmo estando quieto (“O personagem que até agora não disse nada”, no livro de Michel), e que, quando falou, só garantiu o que Maggie precisava saber: o lugar dela era qualquer outro, que não ali. E, com o casamento mais estilhaçado que sua mente, Maggie agarra na última corda de esperança e sai de casa com seu “salvador”, deixando um homem escrever em sua casa sozinho, sobre uma mosca em um copo de vinho, mantida lá para que fosse cuidada desse mundo tão perigoso que está lá fora. Mantida lá com uma falsa promessa de cuidado e amor, mas que só a deixava mais e mais confusa e embriagada com o vapor etílico advindo da bebida. A mosca era Maggie, sempre foi e sempre será. E, com sua fuga, acaba a inspiração de escrever de Michel que, como última cena, vê sua obra chegando a um fim forçado pela falta de papel para que continue escrevendo.

      Essa crítica foi escrita para ser interpretada de modo um tanto quanto lúdico. Tentei expressar a confusão de Maggie e mencionar partes da peça que dramaturgicamente estavam afastadas, mas que narrativamente se fortaleciam entre si. Sinto que, se ficou confuso, meu objetivo foi, de certa forma, atingido. Acredito que acima deixei minha visão integral sobre a peça e as noias que se passam na minha cabeça ao lembrar dela.

    Acredito que o trabalho da companhia foi excepcional, atingiram com perfeição a angústia e o desespero de descobrir o que está acontecendo. E acho que o uso de elementos épicos ao falar com o público só nos trouxe mais ainda pra dentro da obra, pois, ao analisar que estaríamos no interior da cabeça de Maggie, as memórias estariam falando diretamente conosco, deixando claro o que lembrar e o que não lembrar. Até porque “Tudo é falso, menos a dor. A dor é real”. Frases como essas, dedicadas ao público, me colocavam automaticamente no lugar de Maggie e me faziam duvidar dos meus próprios julgamentos sobre os personagens. Gostaria de mencionar também o quanto achei genial o uso de uma banda ao vivo, que ajudava a revitalizar e emocionar ainda mais os contatos já bastante acalorados, e menção honrosíssima para o solo feito pela vocalista, que me fez ir de 8 a 8000 em um momento que estava em crescente na peça e chegou em seu ápice com essa performance. Em resumo, afirmou que a peça foi um sucesso, atingiu o que foi proposto e muito mais. Os meus mais sinceros parabéns a todos os envolvidos, e indicação carinhosa para que vão atrás e apreciem essa obra que, mesmo que tenha sido em grande parte abordada aqui, tem muito mais o que se absorver dela. E assim é Savana Glacial: seu valor não se esvai mesmo após 10 sessões. As dúvidas, as certezas, as dificuldades, os amores, os ódios, tudo só se intensifica e se revela — ou não? Será que as qualidades citadas acima realmente se reforçam ou só se mostram falsas? Acho que, para além de se importar com o que é falso (como uma tesoura, um peito, uma morte), é importante focar na dor, porque só a dor é real.


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